Uma crônica sobre o atual Flamengo no jornal O Globo

Um excelente texto de Pedro Motta Gueiros hoje no jornal O Globo. Uma verdade crônica sobre a fase atual do Flamengo. Vale muito a pena ler, confira:

Composto por Lamartine Babo para enfatizar a fidelidade, o primeiro verso do hino rubro-negro também dá sentido à repetição do caos. Uma vez conhecido como Afeganistão, pelas palavras da presidente Patrícia Amorim, sempre o Flamengo se encarrega de produzir polêmicas e vítimas de uma direção perigosa. Depois de Assis, o irmão de Ronaldinho Gaúcho, exigir 25 camisas da loja do clube, como se tivesse direito de bens à penhora, o acidente de carro de Diego Maurício, que capotou a 500m do Ninho do Urubu, fez o clube reviver passagem ainda mais desastrada. Há dois anos, ao falar do episódio em que Adriano teria amarrado a namorada num poste, o então goleiro Bruno perguntou quem nunca havia batido numa mulher. Ontem, foi Vágner Love quem banalizou a gravidade de tudo que envolve o Flamengo:

— Quem nunca deu uma porradinha, quem nunca capotou com o carro? — indagou o atacante ao atribuir o barulho causado pelo acidente à caixa de ressonância que é o Flamengo. — As coisas são mais faladas porque todo mundo queria estar trabalhando ou jogando aqui. Esse é o Flamengo, não vai mudar. Dá até para escrever um livro.

Era uma vez o Flamengo, um clube que prezava a excelência esportiva e o bom ambiente. Passado o apogeu, com a conquista do Mundial em 1981, esse cenário foi sendo desgastado nos últimos trinta anos até se tornar um campo de batalhas intermináveis pelo poder. Quem está fora, se acostumou a esperar por baixas diárias. Dentro, olhares anestesiados pela indiferença convivem com as vítimas do tiroteio verbal.

— Nenhum clube no Brasil tem essa cobrança — disse Love, dando a receita para sobreviver num ambiente tão carregado. — Quem está aqui sabe lidar. A gente se preserva. Ontem foi dia de proteger Diego Maurício.

Segundo relato do tenente Da Silva, do 31, BPM, o jogador capotou por duas ou três vezes ao subir num barranco na Estrada dos Bandeirantes às 7h30m da manhã de ontem, duas horas antes do prazo que os jogadores têm para estar em campo. Ao vê-lo com escoriações na perna e na testa, o policial antecipou que não havia sinais de embriaguez e que o registro da ocorrência era dispensável por não ter havido danos a terceiros. Após receber os primeiros socorros no Ninho do Urubu, o jogador foi encaminhado para exames num hospital no Méier e passa bem. O tenente estava dentro do centro de treinamento quando esclareceu as circunstâncias do acidente. Entre elas, o fato de o jogador estar chegando ao trabalho tão cedo:

 — É normal, eles chegam antes para tomar café da manhã .

A diretoria do Flamengo também reagiu com normalidade à visita de Assis à loja do clube na terça-feira. Depois de ter o pedido recusado por um vendedor, o empresário teve o desejo atendido pelo vice de finanças Michel Levy. Desde que assumiu integralmente os vencimentos do jogador, em torno de R$ 1,25 milhão mensais, o Flamengo alega estar devendo cerca de R$ 2,5 milhões ao craque, referentes a direitos de imagem em atraso nos últimos três meses. Embora não faça cobranças públicas, as contas de Assis apontariam para algo em torno de R$ 5 milhões.

— A situação está equacionada. Não faremos de um fato isolado da parte do irmão um desentendimento na parceria com Ronaldinho — disse Levy, que diz não ter ouvido o tom de cobrança com que Assis teria chegado ao clube. — Ele foi na minha sala gentilmente. Se uma pessoa a quem você deve vem na sua casa, claro que você fará o possível para atendê-la. Fiz questão de presenteá-lo com as camisas.

Apesar das palavras conciliadoras, a forma de expressá-las revela certa intolerância. Ao telefone, Levy solta gritos e palavrões comuns a quem está no meio do tiroteio. Num ano em que o clube não teve nada do que se orgulhar, resta usar a desgraça dos rivais como atenuante:

— Deviam botar no jornal: Fluminense rumo ao Mundial, o supermercado. Sacanearam o Flamengo quando a gente perdeu e quando levaram o Thiago Neves, agora têm que aguentar. Mais cedo, Vágner Love também mexera na ferida alheia mesmo que isso não redima o Flamengo de seus fracassos: — Tenho certeza de que torciam contra a gente. Então, não custa nada dar uma secadinha.

Apontar o dedo para o oponente é prática comum no Flamengo, mesmo quando o adversário está dentro da Gávea. Nas brigas entre facções que se digladiam pelo poder, um episódio recente revela que a apelação pode chegar até o zoológico

 — Trouxeram denúncia de que um urubu-rei estava morrendo de fome pois o Flamengo não mandava mais dinheiro — contou o vice de relações externas, Walter Oaquim, um dos mais antigos atores da comédia que se funde com a tragédia rubro-negra.

— O maior perigo vem de grupos que só amam o Flamengo quando estão no poder. Capaz de atravessar diversas diretorias, Oaquim já esteve do lado daqueles que agora considera perigosos. Os sentimentos se transformam junto com as cotações de Ronaldinho. Por entender que o astro não tem mais mercado interno, Oaquim conta que a última reunião de diretoria decidiu fazer dele um produto de exportação em amistosos pela China e EUA, nos quais o clube planeja faturar US$ 500 mil por jogo. Conhecido pela capacidade de fazer malabarismo, o exmaior do mundo seria exibido como um saltimbanco da bola.

— Se a gente fizer um jogo por mês, Ronaldinho está pago. Talvez traga prejuízo em alguns jogos do Brasileiro mas levaríamos reservas e jogadores da base .

Sem propostas concretas, Levy prefere não comentar a possibilidade. Nos 26 dias que ficou sem jogar, o Flamengo foi incapaz de fazer dinheiro e progressos no seu time, que enfrenta o Internacional amanhã no Engenhão. Agora, o discurso é que o entrosamento virá ao longo dos jogos. Enquanto isso, Joel Santana toma precauções. Ele terá o reforço de Renato Abreu, cuja suspensão foi convertida em cestas básicas. Após começar o coletivo de ontem com quatro volantes, o técnico terminou com três zagueiros. Andando em círculos em sua quinta passagem no clube, o técnico exibe fidelidade às convicções e um novo sentido para o hino rubro-negro. Mais uma vez, Flamengo?