sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

"A hora do protagonista", por Gustavo de Almeida

Por que o Flamengo tem grande parcela de culpa pelo caos de quarta-feira? Por que não tratou o jogo como se fosse uma final de Copa do Mundo, montando esquema pesado de segurança, de proteção ao redor do estádio para evitar aquelas cenas absurdas que rodaram o mundo?

Nada do que aconteceu foi novidade ou obra do caso. Tudo foi previsto, esperado, aguardado. Tanto que o próprio Flamengo pediu pra torcida entrar cedo no estádio. A única ação que fizeram, no entanto, foi "duas cervejas por R$ 10".

O clube não é o responsável pela segurança pública, porém, o que estava em jogo era algo que lhe afeta de forma tão profunda que foi injustificável ter ficado de braços cruzados esperando que, por intervenção divina ou um possível título, nada de ruim acontecesse.

O jornalista Gustavo de Almeida escreveu perfeitamente sobre o assunto. O link original está aqui.

Confira na integra:


A noite tenebrosa do dia 13 de dezembro de 2017 nunca mais pode ser esquecida – não só pelo empate pífio de um Flamengo sem vitaminas. O acontecimento que mais nos envergonha, todos sabemos: é a lamentável série de acontecimentos envolvendo torcedores no entorno do Maracanã, antes, durante e depois da partida. Mas, dia seguinte, adversário já de volta a seu país com a taça, restou a nós recolher os cacos e avaliar o prejuízo.

Mas ficou no ar a pergunta: de quem é essa crise?

Claro que estou falando em crise pulando uma etapa – a de avaliar se é realmente uma crise.
E convenhamos: o clube passou cerca de 17 horas nessa fase, uma vez que foi só fim da tarde de quinta-feira que seu posicionamento foi divulgado.

E qual era o posicionamento? O jornal Extra, que costuma sempre ser mais duro, implacável e mantém o hábito de girar a faca enterrada no abdome alheio, resumiu: “Flamengo joga a culpa em polícia e torcedores”. Como no rap de Marcelo D2 e Leandro Sapucahy, “coloca a culpa de tudo nos homens do camburão/eles colocam a culpa de tudo na população”.

Como profissional com 23 anos de estrada, eu afirmo categoricamente que aquela nota não foi feita por um profissional de comunicação ou de gerenciamento de crise. Calma. O Flamengo os tem. E dos bons. O que quero dizer é que nessa crise prevaleceu aquele que é geralmente o terror dos consultores de comunicação: o Cliente.

É mais do que óbvio que um colegiado de dirigentes se reuniu para elaborar a nota. E a opinião de quem é profissional de crise deve ter sido algo em torno de 10%.

Para que fique mais claro o porquê de eu considerar que o clube falha ao transferir responsabilidades pelos fatos para terceiros, cito aqui o case relatado no excelente livro Gestão de Crises e Comunicação, de João José Forni, autor que foi assessor de imprensa do Banco do Brasil e se deparou com várias situações espinhosas. Forni discorre sobre as crises que aparentemente não têm a ver com a empresa ou com a marca, como por exemplo os desastres naturais (embora o Flamengo não tenha usado essa expressão, a nota do clube trata os torcedores que assaltaram um ambulante e o outro que roubou pertences de um atropelado quase como chuvas fortes ou pequenos ciclones).

Vamos ao que diz Forni sobre isso:

“Um desastre natural, por exemplo, pode não ser uma crise. Tem potencial para isso - mas num segundo estágio, caso não seja bem administrado, principalmente em relação ao público afetado pelo evento”.

Vamos, juntos, descobrir quem é o “público afetado”?

a) O torcedor honesto, que compra ingressos e paga a mensalidade do Sócio-Torcedor
b) Moradores do entorno e pessoas que passaram pelo estádio
c) Torcedores que pagam o ST mas viam pela TV o jogo
d) Autoridades públicas
e) Emissoras que transmitiram o evento e suas consequencias

Entendamos aí então que o Flamengo precisava tomar uma providência em relação a esses públicos, já que o dano de imagem foi provocado por, essencialmente, dois fatores:

1- Seus torcedores excluídos, por condições sócio-econômicas, do hábito antigo de consumir Flamengo no estádio (torcedores para os quais o clube não consegue encontrar uma solução financeiramente viável, o que obriga a gestão a sacrificar um traço cultural importante e histórico) e que resolveram força a entrada gratuita, num movimento inédito e “justificado” pela já gasta vitimização da pobreza.

2- O clima de guerra altamente previsível (neste ponto, o poder público – NÃO APENAS A POLÍCIA – poderia ter agido com mais presteza) devido aos ataques sofridos pela delegação rubro-negra em Buenos Aires e, mais ainda, às imagens de torcedores argentinos praticando atos de racismo. Cabe lembrar que o Grêmio foi expulso de uma Copa do Brasil porque o goleiro Aranha foi vítima de racismo no Olímpico.

Por esses dois fatores, uma análise intelectualmente honesta não pode deixar de colocar o Flamengo no papel de Protagonista (papel que o clube sempre assumiu com naturalidade no Rio e no Brasil). E sendo o Flamengo protagonista, não deveria se posicionar como o cunhado churrasqueiro que deixa a picanha queimar no churrasco de família, aquela postura de “tou sozinho olhando a carne, tinha que queimar mesmo”. Não. O Flamengo é o maior clube do Brasil, é um país-clube. Não acharia errado se em vez do Luiz Fernando Pezão o governador do Rio fosse simplesmente o Flamengo.

Causa estranheza um posicionamento em que o Flamengo, organizador do espetáculo, responsável pelo jogo, dono do mando de campo, e principalmente, VENDEDOR DE INGRESSOS, promete “discutir com o poder público” as soluções.

Voltamos então a Forni, quando conta o caso da companhia aérea Jet Blue. Resumindo, ele descreve o caso ocorrido às vésperas do Valentine’s Day americano (13 de fevereiro), em que a demanda por voos naturalmente é maior, com centenas de casais à distância que querem se ver. Pois na véspera, em Nova York, uma grande nevasca praticamente soterrou o JFK e, de 156 voos programados, apenas 13 decolaram.

Milhares de passageiros enfurecidos ficaram no saguão do aeroporto, apinhados.

O leitor sensato já deve estar dizendo, “puxa, mas a culpa não é da Jet Blue, né?”. E eu concordo. Assim como concordo quando alguém diz “Olha, a culpa não é do Flamengo se um cara é atropelado e outro resolve roubá-lo enquanto ele está desacordado” ou mesmo “A culpa não é do Mengão se um bando de torcedores invade o estádio, é da polícia”.

Concordo. Estamos, porém, falando de culpa – e culpa não serve para nada a não ser para encher presídios. E convenhamos: no Brasil do Bateau Mouche, nunca ninguém vai preso por problemas em eventos. Não existe.

O que fez a Jet Blue, como nos conta Forni?

1- Assumiu plenamente o problema da operação
2- O presidente da empresa EM PESSOA, David Neelman, acompanhou o desenrolar da crise recebendo informes
3- A empresa foi mobilizada em TODO O PAÍS para resolver a crise
4- O CEO fez um pedido de desculpas público aos 130 mil afetados pelos atrasos e cancelamentos
5- O mesmo CEO providenciou todas as facilidades para trocar vantajosas de passagens e várias compensações de bilhetes grátis e até mesmo indenizações de mil dólares para quem tivesse perdido algum compromisso
6- Uma semana depois, o CEO veio a público divulgando um documento chamado Carta dos Direitos dos Passageiros.

O que provavelmente fez o cliente da Jet Blue? Bom, cada um tem uma história, mas sabemos o que eles sentiram: que estavam gastando seu dinheiro em uma empresa que se importa com seus clientes.
A Jet Blue poderia simplesmente informar aos 130 mil passageiros que a culpa foi da neve? Poderia. Mas o passageiro se sentiria como que abandonado pela companhia. E isso é mortal.

Quando o Flamengo se limita a tentar se livrar da culpa tal e qual um nadador emergindo de um rio com o corpo coberto de sanguessugas, ele não aparece como protagonista, e sim como vilão. É uma empresa que não soube lidar com a diversidade de seus clientes (o velho discurso marxista-cultural do pobre contra rico, quando a questão é basicamente pagar boletos), uma empresa que não avaliou o cenário (um cenário muito fácil de avaliar), uma empresa que tem um programa de Sócio-Torcedor que é tão “moderno” a ponto de demandar que o sujeito “troque o ingresso em um posto de troca”, isso em um dia de decisão – e pior, dia de semana, misturando torcedores a trabalhadores em horário de rush.

Repetindo: o Flamengo trouxe as pessoas, o espetáculo, os ingressos, os jogadores. Deu errado. E depois disso, tentou avaliar os erros DO GEPE, em vez dos próprios erros.

O dano possível (torço para que não aconteça): o seu consumidor – seja ele sócio ou não – perder a confiança na instituição do mesmo jeito que obviamente perdeu a confiança no time.

E o único jeito deste ativo gigantesco chamado Confiança não se perder é o Flamengo colocar a braçadeira de comandante-em-chefe da vida mundana brasileira e empreender as mudanças que só os grandes protagonistas são capazes de liderar.

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